sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Por Bernardo Soares

Minha pátria é a língua portuguesa.


Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim
corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a
sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie — nem
sequer mental ou de sonho —, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em
mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal
página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha
vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer
inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição
de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio
passivo de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em
que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem
querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas,
criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas,
numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se
misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas.
Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em
cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado
e confuso.
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa
que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em
que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira
sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio. . .» E fui lendo, até ao fim,
trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade
real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele
movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias
nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro
vocálico em que os sons são cores ideais — tudo isso me toldou de instinto
como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda
choro. Não é — não — a saudade da infância de que não tenho saudades: é
a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela
primeira vez aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido,
um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada
me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem
pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio
que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não
quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa
própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon,
como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e
ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto
régio, pelo qual é senhora e rainha.

Disponível em http://multipessoa.net/labirinto/bernardo-soares/19 (06-12-2013)

domingo, 6 de outubro de 2013

Segurei-te nas minhas mãos demasiado tempo.
Foste palco de destruição e de um exímio perfeccionismo exacerbado. Alcançaste a glória e deixaste apenas a reminiscência do que fui, do sonho que não permaneceu e dos farrapos de vida que presentemente conservo.
Tornei-me escrava do tempo, flor do deserto que tomou o rumo de uma morte álacre.
Nunca passei de um brinquedo frívolo que se quebra ao primeiro choque e se despedaça atónito, subitamente esquecido da sua função.
Existe uma vontade, uma ânsia de reconstrução, porém resume-se somente a um querer desbotado. Consequentemente impõe-se uma discrepância atroz que me corrói a alma, um foco de luz intensa que me cega.
Hoje desencontrei-me, por isso, o que aqui escrevo não passa de divagações.
Hoje não sou eu quem carrega este corpo, mas o espírito está presente como uma imagem num espelho.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Vagueio por entre estradas fantasiosas, sem indicações, sem destino.
O chão que vou pisando vai-se tornando cada vez mais gasto, e dali levo a nítida sensação de que já lá tinha passado em tempos.
O caminho a percorrer é pérfido mas imponente, cheio de lágrimas passageiras, sorrisos que a seu tempo vão refletir a alma de quem a ocupa e acima de tudo ditar uma vida gloriosa já há muito desejada.
Os sonhos, esses, vão-se construindo e realizando ponderadamente, com o objetivo de adquirir uma paz imperecível.
Construir-se-á paralelamente uma outra estrada, inaudita, sem qualquer semelhante, com o intuito de findar em algo sólido, tal como presentemente deveria ser.

domingo, 4 de agosto de 2013

Entre histórias fantasiosas

Já foram inúmeras as vezes em que me debrucei defronte daquele objeto.
Tendo uma sanidade mental um tanto ou quanto desgastada ainda consegui contrariar os meus pensamentos dicotómicos e perceber que a imagem que ali se expunha indubitavelmente não podia ser uma projeção do resto da minha vida.
Podia-se fixar uma fisionomia elanguescida por escolhas altamente reprováveis, que conduziram a algo manifestamente triste, à irrevogável degradação do meu corpo.
Segui rumo à procura de não sei ao certo o quê nem através de que modo iria dar por achada tal coisa incerta, porquanto parei, parei e resolvi refletir a insignificância da minha procura.
Confesso que já tardava bastante tempo, não fossem os pródigos avisos constantes com certeza nesta altura não me restariam forças para comummente escrever.
Finalmente cheguei à evidente conclusão de que a minha presente situação tinha surgido como consequência de desgosto sobreposto e de lágrimas e histórias ocultas.
A minha alma chorava a bom chorar. Chegou a tal ponto esse choro, que podia agora ser observado por quem assim o quisesse, devido ao facto de não ter dado tréguas à minha figura corporal.
Deixei-me levar por entre histórias fantasiosas, em que o real não era nada mais do que realmente isso, mera fantasia.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Insónia matinal

Eis-me aqui. Debruço-me sobre este pedaço de papel interrogando a tua súbita ausência. 
Espero por ti, impávida e serena. Sei-me obstinada, por isso esperarei sempre por ti. 
Mesmo tendo plena consciência de que nunca virás... Esperarei por ti. 
Curioso, como tudo é engano quando acompanhado pelo baralhar do tempo.
E cá vou vivendo (ou sobrevivendo) envolvida nesta quantidade ignota de porquês, neste cofre fechado a sete chaves sem qualquer tipo de codificação.




segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Reflexo

Passados trinta minutos o olhar era o mesmo. A tristeza daquele olhar não tinha mudado e a vontade de mudar também não.
E ali estava eu, tal qual como os outros me viam. Mas será que eu vejo o mesmo que eles? Será que quando eu me olho ao espelho não vejo uma imagem distorcida da minha aparente personalidade? Ou será que são os outros que não conhecem o meu verdadeiro eu?
Bom, quanto a isso nunca chegarei a nenhuma conclusão.
O reflexo que o espelho me transmitia era completamente desconhecido. Perguntei-me até se era realmente a minha imagem que ali estava exposta. Não demorou muito tempo para eu perceber que sim, que era a minha pessoa de facto.
Aquele olhar estava carregado de mágoa, de desilusão, de arrependimento. A pessoa que estava do outro lado era agora uma pessoa mais fria, mais cansada da vida do que fora outrora. Porém, bem lá no fundo daquele olhar podia-se contemplar uma certa esperança, um brilho de alguém que já fora feliz, já provara do gosto fantástico que é atribuído à vida. Muito provavelmente, esse momento de felicidade teria sido vivido quando a sua única preocupação era que cor dar ao desenho por pintar que ali estava à sua frente. Mas não interessa, essa pessoa, de uma forma ou de outra já fora feliz, ou melhor dizendo, já tivera momentos felizes.
Era alguém repleto de sonhos, e quando se proferiu a palavra "sonhos", a pessoa que estava do outro lado esboçou um sorriso espontâneo. Eram os sonhos que lhe depositavam a pouca segurança que ainda tinha.
Mas a sua vida não eram somente sonhos (assim como não é a de ninguém).
A sua angústia provinha de problemas mal resolvidos, de pessoas deixadas para trás e sobretudo de relações afectivas.
Hoje ela só tinha de resolver o passado para poder seguir em frente e enfrentar a todo o custo o futuro.
Podia ler-se na sua expressão que era uma pessoa séria, determinada e pouco ou nada tolerante. Aparentava uma postura rígida, de quem diariamente instituia regras na sua vida. Por isso, tudo o que estivesse fora dessas regras, ela declarava como sendo errado.
Tinham passado mais quinze minutos e a pessoa que estava do lado de fora do espelho desistiu. Desistiu apenas porque não quis enfrentar a nova realidade, a mesma realidade com que se deparara num tão curto espaço de tempo.
Não acreditava na pessoa em que se tinha tornado e nas inconcebíveis transformações que foram ocorrendo ao longo do tempo.
Aquele olhar triste começou a ficar distante. A luz que estava acesa foi apagada e a pessoa que estava ali sentada a observar a sua imagem no espelho foi-se embora.