sábado, 5 de abril de 2014

Seja o futuro emenda do passado, e o que há-de ser, satisfação do que foi. (Padre António Vieira)

Pergunta-me insistentemente:
- Como é que tudo aconteceu?
- As coisas acontecem, sabe? É como num livro. Neste caso, o livro da vida. Inicia-se com letra maiúscula- ou pelo menos deveria ser de tal modo-, as palavras fluem, vigorosas e coerentes. Estas, criam em quem as lê toda uma sensibilidade para com a narrativa. Por vezes, sinto mais do que o que sei exprimir e isso nota-se aquando da transposição para o papel.
- E o que tem isso a ver para o caso?
- Tem tudo. E ao mesmo tempo não tem nada.
Não sei se ela iria conseguir perceber, mas também sempre fui muito vaga nas nossas conversas. Creio que, de facto, nem eu conseguiria perceber. Por isso esperava que ela caminhasse de encontro ao busílis da questão. Olhou-me com expressão aborrecida e disse:
- Lá estás tu com as tuas contradições... Já reparaste que desde que te sentaste nessa cadeira não disseste nada de concreto? Assim não te consigo ajudar, não consigo chegar até ti.
- Nada mais tenho a proferir. São estas as palavras que tenho para lhe oferecer.
- Ah, estou a ver que és pessoa de uma extrema generosidade!
Surge então aquele sorriso a tender para a ironia, desvanecendo-se por entre a corrente de ar que se fazia sentir naquele espaço diminuto. Os seus braços cruzaram. Fez-se sentir o silêncio que previa algumas palavras minhas, contudo, já tinha anunciado o desfecho do discurso.
Ciente da agitação mental que me estava a provocar aquela conversa tão cuidadosamente conduzida, estudada até ao mais ínfimo pormenor, ela desfez o cruzar dos braços e debruçando-se sobre o teclado daquele pachorrento computador redigiu qualquer coisa que não vi nem nunca verei.

sexta-feira, 4 de abril de 2014

João Tordo apresenta o seu último romance, com um remate em Si bemol (Por Sandra Gonçalves)


  • João Tordo lançou na quinta-feira, na Fundação José Saramago, o seu último romance, «Biografia involuntária dos amantes», que assinala a sua estreia na editora Alfaguara. A apresentação esteve a cargo do escritor José Eduardo Agualusa. Perante um anfiteatro todo ele afecto, com familiares, amigos e fãs, contou que este livro, o sétimo já editado, é «uma tentativa de compor identidades; tem um lado orgânico».
«Biografia involuntária dos amantes» passa-se numa estrada adormecida da Galiza. Dois homens atropelam um javali. A visão do animal morto na estrada levará um deles – Saldaña Paris, um jovem poeta mexicano – a puxar o primeiro fio do novelo da sua vida. Instigado pelas confissões desconjuntadas do poeta, o seu companheiro de viagem – um professor universitário divorciado – irá tentar descobrir o que está por trás da persistente melancolia de Saldaña Paris.
À plateia, João Tordo contou que alterou a sua rotina ao compor este romance. O livro «foi mudando de dia para dia, não o planeei e descobri que sou muito mais livre quando as personagens falam por si, e sem haver uma mecânica no enredo».
Esta é uma obra que resulta de partilhas e cumplicidades; a história do javali foi-lhe contada por um amigo, o poeta mexicano conheceu-o no Canadá em 2012, o professor universitário é inspirado no escritor galego Carlos Quiroga, e Teresa, personagem principal do livro, é inspirada na sua mãe.

«É interessante escrever assim, leva-nos a um confronto com a nossa própria vida», enfatizou, para, de seguida, acrescentar que este romance «joga com reconhecimentos»; descobriu, ao compô-lo, que sozinho não consegue fazer nada.
No dia em que o Benfica preparava-se para defrontar o AZ Alkmaar na Holanda (João Tordo é um ferrenho benfiquista), temia-se que a sala estivesse vazia. Pelo contrário. Mas em várias ocasiões brincou-se sobre isso.
Voltando ao livro, o escritor, que venceu o Prémio Literário José Saramago com «As três vidas» (2008) – pelo que o facto de a apresentação ter ocorrido na Fundação Saramago ter conferido um relevo especial ao evento –, assumiu que inconscientemente acaba por «fazer a migração de personagens de livro para livro», mas que neste «Biografia involuntária dos amantes» conseguiu «fechar personagens e ciclos».
Porém, se ao longo de toda a obra deixou que a história fluísse alheado da sua vontade, sem um motor, o final reescreveu-o muitas vezes. Não queria que tivesse um desfecho «grave nem muito agudo», assumiu. «É um final em Si bemol, como uma sinfonia de Beethoven.»
Confessou ainda que tem um alter-ego que transporta para o seu trabalho e que é através dele que se diverte a fazer jogos. «Gosto de divertir-me no trabalho», disse a rir.
João Tordo confidenciou que este romance «foi muito pacificador, veio de um lado muito sincero». Quando o terminou, revelou, sentiu-se perfeito, por que o ajudou a aceitar todas as suas imperfeições. «Abdiquei do controlo. Soube perder. E isto é muito bom, muito pacificador.»
No final da apresentação, a plateia foi surpreendida com uma intervenção imprevista; um primor. Pilar del Río juntou-se ao evento para dar os parabéns a João Tordo, desejou a todos os presentes «uma boa travessia» e fez questão de frisar que aquela casa, a Fundação José Saramago, «estará sempre aberta a todos».