segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar? (excerto), de António Lobo Antunes

nunca vi uma pessoa ocupar tão pouco espaço como ele nessa tarde à medida que fragmentos indecisos principiavam a unir-se em mim, membranas transparentes e essa espécie de lágrimas que nos acompanham toda a vida, algumas vezes nas pálpebras mas a maior parte do tempo ocultas de nós, numa das pregas de desconsolo de que somos feitos, se conseguisse contar-vos, e não consigo, o que nos rói sem sabermos, o que custa sem darmos fé omitindo os segredos estrangulados e as misérias conscientes, tanta boneca falecida, tantos olhos só nossos que nos censuram
- Porquê?
a minha mãe
- O que se passa contigo?
mentir
- Não se passa nada garanto
quando se passa tudo mãe, não insista nem me dê atenção, casei com o meu marido não foi e anulei as nódoas sem anular os cavalos, aí estão eles a atazanarem-me, não esclareço isto bem porque as palavras avançam depressa e o papel não chega, eis o António Lobo Antunes a saltar frases não logrando acompanhar-me e a afogar num tanque os gatinhos para se desembaraçar de mim, casei com o meu marido e depois do veterinário e do cão cada qual na sua ponta de sofá que ia alargando, alargando, nem aos berros nos ouvíamos, nem juntos nos enxergávamos, nem perto se conhecia o outro
(...)
vi-o entrar no carro, vi-o a ver-me demorando a entrar, esperei um gesto e gesto algum, um braço que acenasse, a bandeirola de um sorriso a desistir, o
- Gosto de ti
apagou-se numa espiralzinha, o que eu não dava para o escutar, se o meu pai gostasse de mim pode ser que eu mais ou menos no apartamento cheio de pregos nas paredes em lugar de quadros e um retrato nosso na quinta
(...)

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