terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Embora façamos parte de um todo, de um conjunto, de uma espécie, somos incumbidos da árdua tarefa que é o desenvolvimento pessoal e intrínseco, contribuindo ainda para o progresso da espécie e do mundo.
É que tudo o que existe nos envolve e move, nos afecta e por isso projecta, nos consome e promove. O que seríamos afinal sem as nossas lutas diárias, o nascer e pôr do sol diário, o brotar das flores na primavera, o beijo de boa noite da mãe e o abraço sentido que nunca existiu do pai, a descoberta de uma estria recente, o filho que nasce, a mãe que morre por isso o beijo que já não existe, ou existe mas já não nos é permitido, o pai que tem uma doença terminal e assim já nos abraça freneticamente? A morte desperta, ou pelo menos a sua antecipação. O filho que cresce e abandona o ninho, o assinar dos papéis do divórcio, a casa vazia e a solidão que se instala, a primeira ruga e as hérnias discais... Eu e tu e todos nós que existimos e deixamos de existir como um fósforo que subitamente se apaga.
Tudo isto constitui o meio e tudo isto constitui a hereditariedade porque minha mãe faleceu de cancro no colo do útero e a probabilidade imensa, o desespero exacerbado. O resultado do exame que chega e uma impotência que não cessa, uma agonia desoladora, o médico que diz
- É hereditário...


sábado, 19 de setembro de 2015

Saio à rua e a vida começa. A rua de sempre, a avó que guincha com os netos de sempre, "deixa-me chegar a casa que já gramas". E gramava. Um choro amiúde soluçado que dói por nada poder fazer, a cólera da existência de uma mãe que não existe.
Existir é estar vivo. É afirmar presença em todas as ocasiões; é a audácia para prometer eu vou estar aqui quando mais precisares; é a imponência de um gesto carinhoso quando nada o prevê; é a beleza de um abraço que parece perpétuo.
No dia em que deixar de valorar tudo isto deixarei de ter completa noção do quão inverosímil é esta estadia.

domingo, 13 de setembro de 2015

Se te disser que nos vamos perdendo a contar o tempo?
Estendo-me no chão e bastam-me as memórias e as palavras que escrevo. São as únicas dádivas intemporais que me mantêm viva.
E se te disser que nos vamos perdendo a cada palavra insensata?
Tento perceber onde está o motivo para a existência de um vazio tão doloroso como este.
Digo-te que nos vamos perdendo a cada linha que concebo e a cada momento lúcido que me invade.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Escrito a 03-05-2013

Nosce te ipsum.

Estou cansada de procurar palavras para expressar o que se passa cá dentro- aqui, onde se fomenta uma mescla infindável de sentimentos,- e nenhuma delas me servir.
Escrevo, apago, torno a escrever. Nada. Não há sintonia entre as palavras, não existe coesão.
Encontro-me num lugar onde a palavra desespero predomina. Choca-me a quantidade de pessoas que pairam por aqui, sem eira nem beira.
E repentinamente mudo de cenário. Sou surpreendida pelo som ensurdecedor do altifalante. Gritava qualquer coisa como "C.A., g.4". Levanto-me com uma vontade enorme de chorar, tal não era a tensão que se gerava ali dentro. De facto chorei, mas interiormente, como é habitual.
Abri a porta que dava acesso ao corredor e percorri a ala com o olhar, na esperança de constatar todos os números excepto o bem dito número 4. Ironia do destino, ou lá o que isso seja, o primeiro gabinete que os meus olhos cruzaram era o que me estava predestinado.
Entrei e limitei-me a sentar. As minhas mãos tremiam, os meus pés e as minhas pernas também. Acho que tudo em mim tremeu nesse momento. Desconheço o porquê de tal coisa, não tinha nada a temer. Ou será que tinha?
Pensei que me tinha enganado no cubículo. Saí e voltei a entrar, estava realmente no espaço que deveria determinar todo um percurso árduo e rigoroso na minha vida.
Segundos passados apareceu aquela senhora bem parecida que me intitula "a peste", que de todo tem um sentido depreciativo. Muito pouco se passou lá dentro. Uma conversa banal, aquele instante que prevê um sorriso partilhado e a tristeza que sobressai da minha expressão, a lembrança de que
- Isso não chega
e eu desejosa que aquela conversa acabasse
- Pois
palavra inútil que repito inesgotavelmente.
E assim pus término à conversa e me vim embora, depois de ela me ter presenteado com um dos seus beijinhos e um abraço que me enalteceu e aconchegou o coração.

sábado, 6 de junho de 2015

António Lobo Antunes, in "O Quinto Livro de Crónicas"

"(...) e não tenho o que secretamente ansiava, de vez em quando momentos tão vazios, de vez em quando, mesmo no meio dos outros, uma solidão tão grande, um desamparo, uma sensação de queda, esta dificuldade em respirar, porque a mobília sufoca, que vem e desaparece e volta, de vez em quando, sem motivo, vontade de chorar, não lágrimas grandes, não soluços, uma coisa vaga, uma pergunta
- E agora?
sem resposta, caras familiares que se tornam estranhas, se te abraçar continuo sozinho (...)"


quinta-feira, 30 de abril de 2015

De que me serve viver se não te tiver para amar?

De que me serve viver se não te tiver para amar?
Ontem fui ao cinema. A sala vazia, o lugar no canto superior esquerdo que outrora ocupaste vazio, a minha mão vazia, a minha alma vazia. Sentei-me no lugar de sempre, com o espírito de sempre, tão vergastado, tão dolorido que tu nunca deste por isso. Fui invadida por uma nostalgia que ocupou todo o espaço envolvente. Era assim que me sentia quando podia empregar em nós a palavra amor, que a nossa felicidade transbordava para lá do limiar do que é ser feliz. Sou tão absurda, tão idiota por te desejar assim.
Vem, limpei a tua cadeira dos nossos preconceitos. Vamos amar o mundo, descobrir a que sabe a paixão, articular os nossos corpos por entre os lençóis já fartos de tantos amassos e beijos ardentes. Vamos, ambos os dois, para que o único erro que exista seja o da sintaxe.




quinta-feira, 16 de abril de 2015

Laivos de um possível capítulo...

Passava das oito da noite quando o pôr do sol findou. Felícia andara todo o dia absorta nos afazeres de casa. Curiosamente, cuidar de casa era das tarefas que mais gostava, no entanto não tinha outro remédio. Amália, de seu nome, e sua irmã de parentesco, cingia-se à tentativa de levar uma vida boémia e tratava de elevar o seu estatuto social a algo que lhe era impossível. Deste modo, para todos os efeitos Felícia acabava os seus dias sem pôr a vista na irmã e de quando em vez suspirava:
- Aquela vadia! A mãe haveria de se orgulhar muito dela!
Tinha um certo desamparo pela irmã e indubitavelmente se orgulhava de não se ter tornado como ela.
Dados os últimos retoques à cozinha, Felícia veio sentar-se na poltrona que se encontrava à entrada da sala de estar. O seu ar acabrunhado tingia um aspecto pálido na sua face e as mãos que acabou então por cruzar perscrutavam como que uma lembrança quase apagada. Subitamente ecoa um telintar que se estende pelo vazio, o telefone de casa tocava. Num gesto pachorrento, "a dona de casa" ergueu-se para ver de quem se tratava.
- Estou?
A voz que se ouvia do outro lado, de índole rouca e trémula, murmurava
- Sou eu menina.
- Que se passa? Que me queres?
Felícia não se encontrava com grande temperamento para conversas, o dia fora demasiado longo e a sua cabeça sufocava de tanta dor.
- Hoje de manhã quis fazer chegar-te uma carta. Pelo decorrer do dia apercebi-me de que essa carta não te tinha chegado, caso contrário terias entrado em contacto comigo.
- O que dizia essa tal carta?
- Vou ler-te o duplicado que trouxe comigo. Sim, tive o descernimento de fazer uma cópia para que possa recordar eternamente a mágoa e sofrimento que te vai consumir e degradar daqui por diante. Enfim, sempre fui uma criatura muito estranha, carrego uma mente repleta de interrogações e hoje, indesculpavelmente, vou transpô-las para ti.

Quando tiveres lido esta carta eu já estarei do outro lado do oceano. 
É uma fatalidade. irreparável e profundamente dolorosa.
Peço-te que, apesar de tudo, guardes os bons momentos que passámos e que todas as noites guardes um espacinho na tua cama e aí me recolhas e embales, bem junto do teu coração. 
Sei que o meu querer não é tudo mas hoje eu queria ter-te aqui comigo para sempre. Espero que compreendas.

Com amor,
o teu pequeno.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Nem tudo acaba no fim...

"A noite cessara, deixando um golpe duro e frígido na superfície da secretária. E no meu coração."
Por hoje termino. Todos os dias termino e nenhum deles finda como eu gostaría: contigo.
Recordo não sei por que motivo a voz de minha mãe, as suas palavras, o cheiro a flor de laranjeira, da qual fazia chá para os nervos. Também com ela fui acostumada a sentir tudo e não poder dar nada. Agora, apenas consigo acariciá-la de permeio de um pequeno e ignóbil vidro, encaixe numa moldura com traços arcaicos. Que belo semblante tinha, que expressão sumptuosa, qual olhar triste que fixa em mim neste momento.
- Ninguém teve culpa. Não ficaram remorsos. Só subsiste um lugar oco na minha alma, no quarto que lhe era destinado, na posição na mesa de jantar que ninguém ocupa, no diminuto espaço que fica entre um abraço, aquele abraço que nunca lhe dei, minha mãe.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Cá está ele, lido e relido... Restou apenas a mágoa da inexistência da sua continuidade.