quinta-feira, 21 de julho de 2016

Não há como fugir àquilo que nos encontra

A vontade expressa de não me querer exprimir
presa aos pensamentos ancorados que não me deixam ir.



A suposição e o mau entendimento foram reprimíveis engenhos que vieram baralhar tudo isto. Porque fomos passagens. Aqui não existes. Não preciso dos sentidos para sentir que existes pois todos os lugares te encontram em mim. E é raro o que te conheça.

20/07, C.V.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Já te disse que, numa luta, o orgulho não traz nenhum troféu?

Cortinas que escondem, encobrem, oprimem e petrificam. São as cortinas que fechas, em que te fechas e onde fechas os outros, às quais dás o nó mais apertado que consegues e ainda assim aquilo que tens medo de dizer a fugir por uma brecha difícil de achar, transformado num silêncio engenhoso. Engole o ar comprimido do teu quarto porque fechas a porta.
Porque te fechas.
Vamos perdendo a essência do diálogo e encontrando nas banalidades do quotidiano mais um ponto de ataque.
Já te disse que, numa luta, o orgulho não traz nenhum troféu?

C.V. 07/07

quinta-feira, 30 de junho de 2016

As mulheres têm fios desligados. Por António Lobo Antunes

Há uns tempos a Joana,
- Pai, acabei um namoro à homem.
Perguntei como era acabar um namoro à homem e vai a miúda
-Disse-lhe o problema não está em ti, está em mim.
O que me fez pensar como as mulheres são corajosas e os homens cobardes. Em primeiro lugar só terminam uma relação quando têm outra. Em segundo lugar são incapazes de
- Já não gosto de ti
de
- Não quero mais
chegam com discursos vagos, circulares
- Preciso de tempo para pensar
- Não é que não te amo, amo-te, mas tenho de ficar sozinho umas semanas
ou declarações do género de
- Tu mereces melhor do que eu
- Estive a reflectir e acho que não te faço feliz
- Necessito de um mês de solidão para sentir a tua falta
e aos amigos
- Dá-me os parabéns que lá me consegui livrar da chata
- Custou-me mas foi
- Amandei-lhe daquelas lérias do costume e a gaja engoliu
- Chora um dia ou dois e passa-lhe
e pergunto-me se os homens gostam verdadeiramente das mulheres. Em geral querem uma empregada que lhes resolva o quotidiano e com quem durmam, uma companhia porque têm pavor da solidão, alguém que os ampare nas diarreias, nos colarinhos das camisas e nas gripes, tome conta dos filhos e não os aborreça. Não se apaixonam: entusiasmam-se e nem chegam a conhecer com quem estão. Ignoram o que ela sonha, instalam-se no sofá do dia a dia, incapazes de introduzir o inesperado na rotina, só são ternos quando querem fazer amor e acabado o amor arranjam um pretexto para se levantar
(chichi, sede, fome, a janela de que se esqueceram de baixar o estore)
ou fingem que dormem porque não há paciência para abraços e festinhas,
pá, e a respiração dela faz-me comichão nas costas, a mania de ficarem agarradas à gente, no ronhónhó, a mania das ternuras, dos beijos, quem é que atura aquilo? Lembro-me de um sujeito que explicava
- O maior prazer que me dá ter relações com a minha mulher é saber que durante uma semana estou safo
e depois pegam-nos na mão no cinema, encostam-se, colam-se, contam histórias sem interesse nenhum que nunca mais terminam, querem variar de restaurante, querem namoro, diminutivos, palermices e nós ali a aturá-las. O Dinis Machado contava-me de um conhecedor que lhe aclarava as ideias
- As mulheres têm fios desligados
e um outro elucidou-me que eram como os telefones: avariam-se sem que se entenda a razão, emudecem, não funcionam e o remédio é bater com o aparelho na mesa para que comecem a trabalhar outra vez. Meu Deus, que pena me dão as mulheres. Se informam
- Já não gosto de ti
se informam
-Não quero mais
aí estão eles a alterarem a agressividade com a súplica, ora violentos ora infantis, a fazerem esperas, a chorarem nos SMS a levantarem a mãozinha e, no instante seguinte, a ameaçarem matar-se, a perseguirem, a insistirem, a fazerem figuras tristes, a escreverem cartas lamentosas e ameaçadoras, a entrarem pelo emprego dentro, a pegarem no braço, a sacudirem, a mandarem flores eles que nunca mandavam flores, a colocarem-se de plantão à porta dado que aquela puta há-de ter outro e vai pagá-las, dispostos a partes-gagas, cenas ridículas, gritos. A miséria da maior parte dos casais, elas a sonharem com o Zorro, com o Che Guevara ou eles a sonharem com o decote da vizinha de baixo, de maneira que ao irem para a cama são quatro: os dois que lá se deitam e os outros dois com quem sonham. Sinceramente as minhas filhas preocupam-me: receio que lhe caia na sorte um caramelo que passe à frente delas nas portas, não lhes abra o carro, desapareça logo a seguir por chichi-sede-fome-persiana-mal-descida-e-os-ladrões-percebes, não se levante quando entram, comece a comer primeiro e um belo dia
(para citar noventa por cento dos escritores portugueses)
- O problema não está em ti, está em mim
a mexerem na faca à mesa ou a atormentarem a argola do guardanapo, cobardes como sempre. Não tenho nada contra os homens: até gosto de alguns. Dos meus amigos. De Shubert. De Ovídio. De Horácio, de Virgílio. De Velásquez. De Rui Costa. De Einzenberger. Razoável, a minha colecção. Não tenho nada contra os homens a não ser no que se refere às mulheres. E não me excluo: fui cobarde, idiota, desonesto.
Fui
(espero que não muitas vezes)
rasca.
Volta e meia surge-me na cabeça uma frase de Conrad em que ele comenta que tudo o que a vida nos pode dar é um certo conhecimento dela que chega tarde demais. Resta-me esperar que ainda não seja tarde para mim. A partir de certa altura deixa-se de se jogar às cartas connosco mesmos e de fazer batota com os outros. O problema não está em ti, está em mim, que extraordinária treta. Como os elogios que vêm logo depois: és inteligente, és sensível, és boa, és generosa, oxalá encontres etc., que mulher não ouviu bugigangas destas? Uma amiga contou-me que o marido iniciou o discurso habitual
- Mereces melhor que eu
levou como resposta
- Pois mereço. Rua.
Enfim, mais ou menos isto, e estou a ver a cara dele à banda. Nem uma lágrima para amostra. Rua. A mesma lágrima para amostra. Rua. A mesma amiga para uma amiga sua
- O que faço às cartas de amor que me escreveu?
e a amiga sua
- Manda-lhas. Pode ser que lhe façam falta.
Fazem de certeza: é só copiar mudando o nome. Perguntei à minha amiga
- E depois de ele se ir embora?
- Depois chorei um bocado e passou-me.
Ontem jantámos juntos. Fumámos um cigarro no automóvel dela, fui para casa e comecei a escrever isto. Palavra de honra que na janela uma árvore a sorrir-me. Podem não acreditar mas uma árvore a sorrir-me."

António Lobo Antunes

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Hoje dói, já não temos mãos para apanhar lágrimas de tantos choros. É quando pensamos na impossibilidade de acontecer que acaba enfim por acontecer. Não quero pensar no amanhã. Mas hoje dói.


segunda-feira, 27 de junho de 2016

"O Grande Gatsby", F. Scott Fitzgerald

Sorriu compreensivamente- muito mais que compreensivamente. Era um daqueles sorrisos raros, com uma nota de confiança eterna, com que só nos deparamos umas quatro ou cinco vezes na vida. Encarava- ou parecia encarar- num único instante, o mundo eterno no seu todo, e depois concentrava-se em nós, com irresistível predilecção. Compreendía-nos até onde queríamos ser compreendidos, acreditava em nós como gostaríamos de acreditar em nós próprios, e assegurava-nos que tinha de nós aquela imagem que, nos nossos melhores momentos esperávamos projectar. Precisamente nesse ponto desaparecia- e eu contemplava um jovem vigoroso e elegante, um ou dois anos além dos trinta, cuja rebuscada formalidade no discurso por pouco não se afigurava absurda. Momentos antes de se apresentar, fiquei com a nítida impressão que escolhia as palavras com todo o cuidado.

domingo, 12 de junho de 2016

No dia em que estacionaste o carro na terceira fila a contar da entrada, sexto lugar a contar do fim, milésima vez que me evades o pensamento.
A tarde passou mais depressa que o habitual. Um casal francês tirava fotografias encaixando o rosto da sua metade. Treme daqui, treme dali, expressões semelhantes às fotografias que se tiram para renovar o cartão de cidadão, bilhete de identidade ou lá o que existisse na altura, ou àquelas tiradas aos prisioneiros que lhes antecedem a entrada para o retiro espiritual. Esta seria a estampa a enviar aos filhos
- Olha aqui a mãe com um ar tão sereno. Está de ótima aparência!
Até que o rebordo de um copo de imperial encostado aos lábios e um flash. Quando chegasse à terra, o amigo do peito
- Seu bêbedo! Andaste armado em fino...
- Não que a mulher não deixa.
- Como vai ela? Brilhou em território lusitano?
- Bebeu mais do que eu. Chegou para ofuscar a capital inteira.

C.V. 12/06

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Com vista a racionalizar todo o seu percurso e chegar ao âmago da questão, um deles balbuciava
- A S. Está cada vez mais triste. Onde foi que errámos, explicas-me? Estou um caco, sinto-me impotente e há três dias que não consigo pregar olho. Já te deste conta do abismo profundo em que ela vai cair? Onde estávamos nós? Onde estivemos nós este tempo todo?
De perna cruzada, ele abanava a cabeça. Ela detivera o olhar algures, na máquina do café, talvez, nas reminiscências da rapariga forte que fora a sua S.
- Quem diria
Não espero alcançar nem extrair, de modo algum, o que lhe desgasta os dias penosos e rastejantes. Insisti na procura de vocábulos que não fossem ferir susceptibilidades. Não obstante, queria ser objetiva e que eles entendessem o novelo que é projetado a cada passo dado em direção à sala das confissões, eufemismos à parte.
- O abismo está declarado, meus senhores. Lamento. Calma, paciência, compreensão, dedicação, conforto e amor. É tudo o que ela necessita, somente ainda não se encontra receptiva a tamanho impacto. Subtilezas que ela desconhece. Confiem ou não no que vos passo a dizer, a S. vive livremente aprisionada. Aqui não existe nenhum caos por decifrar.
Irreal, direis vós. Aqui dispo-me de preconceitos. A perfeição é uma utopia e remar até este estado consciente é uma glória.

C.V. "baú das memórias"

sábado, 4 de junho de 2016

Al Berto

Quando não estás
o que nos rodeou põe-se a morrer
a janela que abre para o mar
continua fechada só nos sonhos me ergo
abro-a
deixo a frescura e a força da manhã
escorrem pelos dedos prisioneiros da tristeza
acordo
para a cegante claridade das ondas
um rosto desenvolve-se nítido
além
rasando o sal da imensa ausência
uma voz
quero morrer
com uma overdose de beleza
e num sussurro o corpo apaziguado
perscruta esse coração
esse
solitário caçador

Al Berto, "Quando não estás"

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Que valsa é esta que me embala?

Que valsa é esta que me embala?
Arde-me na pausa que fala
E finda na cadência suspensa
De não haver nada no mundo que nos pertença,
Neste andamento que me seduz e cala.

Que partitura é esta que carrego?
Esconde-se nas horas mortas
E não sossego.
São semifusas que se fecham em copas,
Sortudo sou nesta vida a que me entrego.

C.V. 01/06

terça-feira, 31 de maio de 2016

Para onde quer que olhasse papel canela figurava o passadiço onde turistas cheios e sedentos de "souvenires" se debatiam entre si sobre o mais recente e inovador, acabadinho de sair do forno, mosaico português. As cartas estavam todas rasgadas à medida, intocáveis pelos pés dos passantes como se em volta existisse uma aura protetora. De perfil, os lábios carnudos não teciam dúvidas a respeito da sua identidade. A perder de vista, fruto de mãos agora trémulas, destroços de declarações profundas.
- Que fazes aqui com todas estas cartas?
- Olha, já a Clarice dizia: eu rasgo o verbo porque não posso rasgar o sujeito.

C.V. 31/05/16

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Capítulo quinto

Primeira noite de loucura, cai em mim uma febre ignora de te escrever. Cai em mim um desespero medonho de que fujo e foges, um impulso sôfrego que te traz e despeja nas entrelinhas de uma vida.
Por aqui os dias traduzem-se no costume. Conservam-se os bons modos de Amália, nódoa ingrata... A Ermelinda que acresce aos
- Bons dias D. Felícia
uma poderosa entoação num
- Como está o seu menino?
Confesso ainda não ter tido coragem para lhe dizer, numa abordagem imediata, já não te saber nem perto nem longe. E como se tamanho infortúnio não fosse suficiente, que dali por diante o possessivo encontrar-se-ia desenquadrado tal como o propósito da interrogação...

(...)

C.V. 10/15

domingo, 29 de maio de 2016

A 5 de Outubro

Tinhas acabado de secar as lágrimas, as primeiras que vi brotar dessas maravilhas cor de avelã. Debruço-me sobre o muro da praia para te ver chegar e, despropositadamente, fixas-me o olhar como se estivéssemos confiados ao destino. Calculas o quanto dói o impedimento de um olhar? Um olhar que se demora ele próprio a construir? Que requer uma explicação intraduzível, que te consome, que se apropria de ti? Existe maior verdade do que aquela que alcanças com o olhar?
Juro que te disse tudo o que queria dizer sem dizer nada. Aqui tens... É isto que preciso que saibas, que algures nascem sensações que só se adivinham com o coração.

C.V. 05/10/15

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Deu duas voltas à chave e abriu a porta. À entrada, Cardoso Miguel "o porteiro" já havia prevenido Amália de que a irmã não poderia andar bem.

- Até tremo quando penso na possibilidade daquela esgroviada sair à rua. Desculpe o termo mas nunca vi coisa semelhante. Parece uma selvagem, meu Deus! Passei a manhã a tentar decifrar o que mais tarde percebi ser o ruído de loiça a quebrar. Vá por mim, antes de ir domar a fera passe pela lojinha da Guilhermina "a taralhoca" e traga uns pratinhos de plástico para desenrascar. Ou passe o garfo e a faca pelo tacho, faça como quiser... Desculpe o riso incontido mas é inevitável, não consigo parar.

Cardoso Miguel "o porteiro" era um predilecto por cognomes e, por isso, todos os residentes do prédio, organizados na sua secretária de serviço por fotografia e por andar e do esquerdo para o direito, tinham o seu. Dizia ser uma coisa chique, carismática.

O acautelamento de Cardoso Miguel "o porteiro" que Amália julgou, por momentos, limitar-se a algo fictício pareceu-lhe mais real do que o que realmente esperava, depois de ter aberto a porta fazendo um ângulo de 45 graus. Digamos que o bastante para se ferir com os estilhaços de vidro que rodopiavam no corredor que seguia em direção à cozinha. Horrorizada, gritou pela irmã tentando sobrepôr a sua voz de cana rachada ao rebuliço sonoro envolvente.

- Onde andas tu? Oh mulher, olha que os funerais estão pela hora da morte e eu não tenho dinheiro para dispender assim do pé para a mão. Faz o favor de me avisar com a devida antecedência. É que o Cardoso Miguel "o porteiro" não é de se fiar e para além de quase me matares do coração ainda me destróis o pouco capital que me resta. Cautela, muita cautela! Maria Felícia, onde raio te meteste?!

Percorreu o andar de baixo sem que nenhum canto pudesse passar despercebido. Quando deu por si, com todo o alvoroço subjacente à situação, a extensa coleção de discos vinil pela qual tanta estima tinha Felícia estava agora desfeita.

- Agora é que a santinha colapsa, pensou.

(...)

- Não tenho nada que me prenda aqui, entendes?

- Como não tens? Eu estou aqui, sou sangue do teu sangue. Esta casa pertence-te. A Ermelinda do café todos os dias por ti pergunta, sente a tua falta. O bairro que com a tua ida se vai tornar mais monótono que a missa de domingo do padre Clemente. Porém, esquece a casa, esquece a Ermelinda, esquece o bairro e esquece o padre, que essa alminha não tem salvação possível. Caramba Felícia, sou tua irmã! A quem vou contar os meus dias, se te fores? Em que ombros irei pousar a cabeça quando me apetecer chorar e mandar tudo à fava? Nos do Cardoso Miguel "o presunçoso" quando ao entrar no prédio lhe fizer um aceno forçado?

(...)

- Levo as setecentas e trinta cartas. É o que me resta, é tudo o que tenho.

- Dizias, ao engano, que nada na vida te iria prender a nada. Olho para ti e tenho pena. Fazes-me lembrar o nosso avô quando foi exilado... Parece que o estou a ouvir

(-Não tenho outro remédio.)

E assim pareces tu.

(...)

Valerá assim tanto a pena pensar que cada acontecimento se dá por um motivo? O que é cada coisa ser o que é?

(...)

As rugas vincadas em torno dos seus olhos tornaram, ao contrário do que por vezes sucede com o passar do tempo, o seu rosto mais apetecível. Jamais Delfim se esquecera da silhueta em que outrora pôde privilegiar de um toque. Convicto como nunca, aproximou-se do muro onde, sentada e consciente, Felícia mirava o Tejo e onde, no seu ombro, a sua mão ganhou forma.

- És mesmo tu?

(...)

De tudo o mais que lhe foi surgindo ao longo da vida, e do pouco que eu soube, teria ficado uma marca que nem a própria conseguiu explicar.

- E eu, que dizia que nunca nada me iria me prender a nada, revejo toda a minha vida resumida naquele dia, naquela mão que acabou então por cruzar a minha.

C.V. 27/05/2016


sábado, 16 de abril de 2016

Pediu-me um café histericamente curto e ainda estou para saber como seria se vivessemos histericamente a vida. 

C.V. 16/03


quinta-feira, 31 de março de 2016

Já quis ser mar e fui terra

Já quis ser mar e fui terra,
Já fui tudo aquilo
que de uma alma se eleva,
e aterra
por o voo ser diretamente proporcional à queda.
Contento-me hoje com a aurora diária
e altiva é a minha comoção com a vida,
simples e precária,
porque nada mais espero
se não aquilo que só de mim espero
e até isso é hipotético e engano.
Agora? Nem mar nem terra!
Assim sou o extenso paredão
que segura e encerra.

C.V. 31/03/16

sábado, 26 de março de 2016

Com conta, peso e medida

De forma recorrente instalamos o nosso íntimo junto daqueles que nos cativam. Quando digo instalar trata-se disso mesmo, de uma instalação que abrange todo um conjunto de passos e leva o ser humano a uma plena liberdade de espírito para com o outro. Ser-me-ia agradável ao ouvido, a mim e a todos vós, dizer que as pessoas que se cativam mutuamente cumprem rigorosamente todos esses procedimentos. Procedimentos? Que vem a ser isso? Mais uma de muitas utopias, embora submersa na consciência de cada um.
A verdade é que a memória não me deixa mentir. Num mundo onde relações de todo o tipo de estabelecem num abrir e fechar de olhos, o seu inverso facilmente se dá. Porque a naturalidade com que se cria e descria o afeto, a compaixão, a amizade, a lealdade e outros sentidos tais me parece assombrosa, diria até desoladora. E por breve alheamento escuto algures Pessoa que sussurra "Dá-me vinho porque a vida é nada.". Não sei se o génio dos heterónimos estaria tão errado assim.
Retomando o desagrado questiono-me, tal como ontem, tal como amanhã e tal como nos dias precedentes e intermináveis. Porque as mesmas perguntas surgirão e não passarão disso mesmo, perguntas suspensas num antro de desrespeito e podridão sentimental. Porque damos, porque sorrimos, porque falamos e confiamos, porque sentimos, uns mais que outros, de forma mais ou menos calorosa. Porque gostamos, porque estaríamos dispostos a qualquer coisa. Porque adoramos. Porque cativamos e somos cativados. Porque caímos no desconhecido.

C.V. 26/03/16



terça-feira, 15 de março de 2016

António Lobo Antunes- Olhar para ontem

Não vale a pena falarmos, para quê, quanto mais falamos mais a gente se magoa um ao outro, fomo-nos distanciando tanto com o tempo, sinceramente nunca imaginei que isto acontecesse, não era assim ao princípio mas nunca é assim ao princípio, as coisas começam a correr mal devagarinho, não damos conta e nisto, de repente, tão longe um do outro, linguagens diferentes, falta de paciência, silêncios que magoam, frases a que não se responde, uma irritação surda, uma impaciência que se tenta disfarçar sem a conseguir disfarçar totalmente, um desconforto mudo mas presente, cada vez mais presente, uma espécie de enjoo, uma espécie de desgosto, o que faço aqui, o que fazes aqui, qual o motivo de continuarmos juntos se não faz sentido, qual o motivo de teimarmos ainda? Se ao menos houvesse alguma coisa que pudéssemos tentar, tu e eu, sentarmo-nos os dois no mesmo sofá, nem que não conversássemos, sentarmo-nos apenas, um ao lado do outro, tu a veres televisão, por exemplo, há aquela novela brasileira que gostas, e eu a olhar para ontem, sempre foi a minha especialidade, olhar para ontem, e permanecermos assim uma hora ou duas, em paz, pode ser que sejamos capazes de encontrar alguma paz, o que é que achas, não estou muito seguro disso mas sei lá, existem surpresas, voltarmos a habituar-nos um ao outro, devagarinho, e tirar prazer disso, pelo menos algum, ainda que pequeno, prazer disso ou, pelo menos, uma ausência de desprazer, o que já não seria mau, pergunto-me se ainda gostamos um do outro e, sinceramente, não conheço a resposta, penso que não, penso que sim, penso que um bocadinho, lá ao fundo, sob o tédio, o ressentimento, o cansaço, porque tanto tédio, tanto ressentimento, tanto cansaço, se mudasses de penteado, se comprasses uns vestidos novos, se usasses saltos mais altos, se me surpreendesses, tornámo-nos tão quotidianos, meu Deus, tão monótonos, não dizes nenhuma coisa que me interesse, não digo nenhuma coisa que te interesse e não é possível não dizermos nunca seja o que for que não interesse o outro havendo pessoas que nos acham divertidos, cultos, se calhar fascinantes, o Carlos, por exemplo, acha-te fascinante, o cretino
- A Amélia é fascinante
aquela tua amiga das saias curtas considera-me o máximo que bem lhe percebo nos olhos, fica de cigarro apagado, feita estátua, a mirar-me e não seria idiota tu inclinares-te para o Carlos e eu para a tua amiga, bastava passarem uns meses para nos fartarmos deles, tanto fascínio e tanta estátua cansam, e daí, quem sabe, não, deixemo-nos de fantasias, tanto fascínio e tanta estátua cansam mesmo, olhemos as coisas de frente, sem infantilidades, cansam mesmo, a questão importante, quer dizer, a única questão realmente importante, é saber se nos cansámos um do outro, do Carlos e da tua amiga podemos, ou não, ocupar-nos mais tarde, no que me diz respeito é não, no que te diz respeito suponho que também, e se a gente voltasse, ou antes, se a gente tentasse voltar a namorar, não sei se sou capaz, não sabes se és capaz, calculo eu, mas o que se perde em tentar, um namoro tímido, lento, envergonhado ao princípio mas que vai crescendo, crescendo, ainda não somos velhos, ainda não desistimos de ser felizes, pois não, o que te parece sermos felizes um com o outro, um beijo aqui, um beijo ali, uma palmadinha no rabo que, se calhar, excita, uma ida ao cinema, um fim de semana fora, num hotel qualquer perto do mar, se não for muito caro podemos, ouvir as ondas no escuro, da cama, enquanto nós, não faças essa cara, enquanto nós tal e coiso, há quantos meses nós não tal e coiso, nós não nada, tu de camisa de dormir transparente, eu, para variar, sem peúgas, se me permites uma confissão, perdoa ser atrevido, acho, como exprimir-me, acho que, não leves a mal, acho que continuo a, palavra de honra, amar-te, isto é a sério, não é da boca para fora, não é assim no ar, acho que continuo a amar-te e, desculpa a presunção, atrevo-me a pensar que continuas a amar-me, se estiver enganado não hesites em dizer que eu aguento, no ponto em que as coisas estão aguento tudo, mesmo esse telefone a tocar agora que não convinha nada que tocasse e tu
- Carlos
sem ouvires o que eu digo, tu, de olhos fechados
- Carlos
tu a sorrires sem ser para mim
- Quando?
tu
- Este fim de semana acho que posso, sim
tu
- Um hotel em Madrid adorava
tu
- O meu marido?
tu
- Há séculos que esse deixou de contar
tu
- A que horas?
tu
- Estou pronta às três
tu
- Buzina da rua que eu desço
tu
- Agora não posso falar muito
tu
- Às três horas tenho a mala à porta
e, se às três horas tens a mala à porta, talvez me possas fazer o favor de deixar escrito aí, num papel, o número da tua amiga das saias curtas que, de certeza, há-de gostar de acordar comigo em Barcelona.

quinta-feira, 10 de março de 2016

O estereótipo abominável

Acabo então por chegar a esta breve conclusão, a de que a vida é gerida por um destes dois fios condutores: necessidade ou hábito, a que podemos de igual forma denominar comodismo.

- C.M, P.4
A primeira criatura que me chama assim. Bom, ela sempre adorou irreverências. Pernas erguidas, oito lances de degraus, meia dúzia de engravatados com ar altivo. Bato à porta e o Esteves passa o cartão
- Olha! Outra pobrezinha... Esta juventude não vai de mal a pior, vai do pior ao execrável.
Miro-os a todos e de todos tenho pena, até do Esteves. Nem dinheiro tem para aparar o bigode. Pobre que é pobre partilha a pobreza e a entreajuda é coisa que se aprende desde pequeno. Dou um toque à J. e ela rapidamente resolve a questão, é limpinho.

A porta aberta antevia a conversa...
- Oh J., por cá?- como se nos tivéssemos cruzado por mero acaso.
- Pois então, como está a peste?
- Fantástica, não se nota? O mesmo não poderei dizer do Esteves... O raio do homem insiste em preservar aquele aspeto carrancudo.
- Só tu para me fazeres rir numa hora e sítio destes. Também insistes em preservar o teu bom sentido de humor!
- Vou fazendo por mantê-lo. Mas olhe que não é tarefa fácil, admito. Ainda não há menos que um quarto de hora aborreci-me com uma situação. Não me aborreci, fiquei desiludida. Sabe como funciona o mundo da linguagem tão bem quanto eu. Deveras chego a crer que se deveria começar a ensinar qualquer coisa como Dialetos Lusitanos ao invés do Português. Pense comigo: seria bem mais atrativo, dado que se iria somente dar continuidade a uma aprendizagem de uma disciplina que nunca existiu mas que inevitavelmente toda a gente absorveu. Não andarão os professores e o ministério equivocados nesta questão? Estaríamos a formar, claro está, ignorantes. Contudo, uns ignorantes felizes. Quem é feliz numa aula de português? Bom, o que eu ouvi foi o seguinte. Não importa de que boca imunda surgiu esta/este... (Não existem adjetivos.) Convém sublinhar apenas ter sido este discurso emitido por um senhor que a priori tem o mínimo do chamado bom senso

- Detesto gripes, fod****. Manda-me bué abaixo. 'Tás a ouvir? (...) A enfermeira Maria... Lá dentro. O cigano é que disse à gente. Ya, cortar o rabo de cavalo, o gajo. Olha quem é ele! Já não ligas aos pobres pá? Isto aqui é o cantinho da saudade pá? Senta aqui... Tudo bem? (...) É verdade, viva ao campeão. Ganhámos é o que interessa. Jogou da maneira suficiente para ganhar é o que interessa. Se jogou grande pequenino não interessa. Dá aí um cigarrinho dos teus, vamos lá para fora masé. (...) Porra, o Patrício não tinha hipótese nenhuma. Agora o Cassilas!


C.V. 11/03/16




quarta-feira, 9 de março de 2016

Por José Paulo do Carmo

"Os olhos brilham intensamente, a alma transpira emoções e eu sinto porque o coração começa a bater mais rápido e a necessidade de uma demonstração física vem ao de cima. Não basta um olá, um adeus ou um sorriso, por muito rasgado que ele seja. Preciso de te passar tudo aquilo que estou a sentir, a intensidade, o calor, para que não haja dúvidas. Não és uma pessoa qualquer, por isso mereces o que de melhor tenho, é a forma mais pura, humana e genuína que posso encontrar para simbolizar a alegria neste momento, a força das relações, o que de melhor tem um ser humano.

Acho que acabámos por perder na história a essência desta profundidade, chegar, olhar, sorrir, abrir os braços e passar emoções, mundo, encostar, fechar, sentir, dar e receber, transmitir, envolver e deixar ir. Vejo por aí muitos abraços sem vida, sem razão, sem respeito pelo gesto, coisa banal que se subjugou ao beijo e que se deixou ultrapassar pela frieza e egoísmo do premeditado, do formatado, do "porque sim"."


sexta-feira, 4 de março de 2016

O capítulo final (finalmente) e a revisão

Sobreviva quem souber, salve-se quem puder.

(...)

Ontem
- Felícia, ele tem outra
Hoje
- Felícia, ele tem outra
A subida do Camões que diz
- Felícia, ele tem outra
Até o maluco da Rua do Ouro
- Metes-te ao jeito... Olha no que deu. Oh dona, era mais que previsível que ele tinha outra
A Amália! (Deus lhe dê o merecido descanso) aos tombos, pobre defunta
- Sempre disse que havia muito espinho naquele florido todo. Vais pela estupefacção e deslumbramento inicial... Olha no que deu. O meu sexto sentido nunca falha!

(...)

1932, 14 de Setembro

Gosto de ti, mas ontem meteram-se uns assuntos por intermédio que me fizeram não ter tempo para te escrever.
O contabilista não dá uma para a caixa e ainda chamo eu àquilo um contabilista. Até a minha avó zarolha fazia figura mais bonita. Ai não! E depois o trânsito. E depois os travões que falharam. E depois uma amiga que demorou duas horas para me prestar auxílio. E depois o jantar como forma de compensação. Olha que fiquei bastante agradado, é uma boa companhia, sabe estar, sabe falar... Pareces tu. Mas eu gosto é de ti.

(...)

Gosto de ti. Garanto que gosto. Juro por tudo o que de mais sagrado existir que gosto de ti.

(...)

Quando cheguei a casa tinha o correio em cima da mesa e mal dei com os olhos no primeiro envelope a temperatura ambiente deve ter subido para lá de 10 graus. Ela não abriu mas ficou suspensa sobre o que a carta poderia conter. A verdade é que ela nem precisou de abrir e tu sabes o motivo. Aconteceu que vi-me entre a espada e a parede. Melhor ainda, entre o confortável e o desconhecido, sejamos honestos. Deixando-me só, obrigou-me
- Ou eu. Ou ela. Simples. Muito simples.
E a resposta tu também já sabes. Desculpa-me a cobardia.

(...)

Catarina Virgílio. A 4 de março de 2016


quinta-feira, 3 de março de 2016

Escondemos tanto que acabamos por revelar tudo. Sem querer. E era tudo o que menos queríamos. Que o outro soubesse, que o outro mantivesse aquela réstia de suspeita sempre presente. Jogamos com as pessoas como os reformados da minha aldeia jogam à sueca, como uma banalidade pertencente à rotina. Envolvemo-nos num círculo de lamentos (círculo de mentiras?) e a sinceridade já muda de nome
Ponto

C.V. 03/03/16

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Mas nenhum tempo mata a dor

O tempo passa. O tempo passa e a dor passa. Não passa mas espalha-se. Espalha-se por todo o corpo, espalha-se por todos os dias. A dor espalha-se. A dor não morre mas espalha-se. E o que está mais espalhado é menos intenso. Vale o mesmo mas é menos intenso. Como ter várias pequenas feridas suportáveis em vez de ter uma grande ferida insuportável. É isso que o tempo faz: espalha a dor. Ensina-nos a suportar a dor. A espalmá-la, a dividi-la. Mas nenhum tempo mata a dor.

Pedro Chagas Freitas, in Sexus Veritas

domingo, 14 de fevereiro de 2016

As Cartas sem Retorno e o Juízo Final

Quase tudo se passa em silêncio. Ainda hoje, quis levantar-se da mesa e em lugar de levantar-se aumentou-se no assento. E o desgosto, o desprezo, as mãos ora cruzadas ora sustendo o peso da cabeça. O que dói mais que um infeliz cruzar de dois destinos?
- Agora é que arranjaste a bonita. - pensou.
Se não a conhecesse diria que uma farda, uma espingarda e munições e estava pronta para a guerra. Pena tenho daquele que a encontrar e, ele que tenha, primeiro o impulso e automaticamente a seguir a perspicácia exigida para que quando o olhar dela o incidir ele se possa pôr a milhas dali.
Excluídas as hipóteses, era a última faceta dela que me faltava assistir. Não, não estávamos a jogar ao "Quem é quem?" e muito menos ao faz de conta. Garanto ter sido um caso sério... Bicudo até. De certo tinha acabado de dar férias a metade dos meus neurónios quando a abandonei. Fez dois anos na passada semana, setecentos e trinta dias sem que uma pequeníssima palavra lhe fosse dirigida. E aquela química invejável que possuíamos? Setecentos e trinta dias...
Contraído em divagações não participou do paulatino erigir de Felícia, que acabara de acercar-se da mesa corrida das bebidas e de um trago fazer escorrer até às entranhas um whisky duplo.
- Mecanismos de tortura que nos levam a ponteiros trabalhados em mostradores de porcelana. Tudo aparentemente estudado ao pormenor e, ainda assim, tão fraco, tão efémero. - dizia Felícia em monólogo à medida que passadas largas se estendiam pelo corredor central., - E não foram setecentos e trinta dias meu caro. Foi o teu retrato suspenso na parede do hall de entrada. Foram as poucas tonalidades de voz idênticas à tua que de quando em vez me via obrigada a escutar. Foi o procurar-te em todos os homens e nenhum deles seres tu. Foi o teu toque suave que todas as noites se evapora em mim. Foi a máquina de escrever que propositadamente encondeste na gaveta dos lençóis. Foram as setecentas e trinta cartas sem retorno.

15/02/16. C.V.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Agora é que lhe lembram as cacetadas...

Olha, não sei por onde começar. Muito menos sei se conheço o número mínimo de palavras para escrever alguma coisa que jeito tenha. Que se danem as frases bem feitinhas, essas pertencem-te por mérito. Lá o alemão, como é que o homem se chama? Ah sim, o tal Beethoven: "o prodigioso pianista". Ele um valente surdo e o pai um alcoólico potente, mas um...

(- Incontestável e exímio compositor!)- ecoa indignada.

indivíduo que rabisca umas notas de música às direitas. E eu um valente desgraçado e filho de um traste que nunca pus a vista em cima escrevei uma treta qualquer. Espera! Ofereceste-me p'lo natal aquele livro da conjugação dos verbos e trouxe-o para to deixar, anda lá ao pó e a capa já tem bolor. Ora veijamos...

Eu escreverei
Tu escreverás
Ele escreverá
Nós escreveremos
Vós escrevereis
Eles escreverão

Ah então é isso?! Desculpa, mais vale ficar quieto. Deves subir aos arames com estas cacetadas.

(- Agoram é que lhe lembram as cacetadas. Dava-lhas eu se o destino não se tivesse tornado um impostor.)

(...)


11/02/16. C.V.

sábado, 9 de janeiro de 2016

Poupem-me as louvações. Poupem-me as comiserações. Poupem-me os discursos à cobrança cheios de adjetivos que simulam uma vitória nunca antes vista. Poupem-me as preocupações
- Eu avisei-te! Tantas vezes Catarina... Nunca quiseste ver.
Se me submeto ao ato de tornar isto público aos poucos que vão lendo estes pequenos textos vomitados é para que possam analisar por meio de uma perspetiva objetiva a gravidade de uma realidade tão deplorável e recorrente como esta. Sinto uma certa necessidade, necessidade essa provocada por preconceitos sociais e pelo desdém a que fui submetida durante uns incontornáveis três anos.
A princípio não tive os ditos "pés assentes na terra" para que pudesse reverter imediatamente a situação. Felizmente acordei a tempo. E é por aqueles que caem num sono profundo antes de tempo por causa desta doença que escrevo hoje. Não por mim, que todos os dias quis desistir, não pela pessoa que jamais outrora tivera algum tipo de ligação comigo e que curiosamente foi a única a não desistir do farrapo de pessoa que construí.
- Sempre mas enquanto precisares de mim...
As pessoas só são completamente verdadeiras quando são confrontadas com casos que lhes trazem subsistência, uns dinheiritos na conta bancária para os jantares e copos com os amigos e o bastante para sustentar a casa, o carro e o ego.