domingo, 14 de fevereiro de 2016

As Cartas sem Retorno e o Juízo Final

Quase tudo se passa em silêncio. Ainda hoje, quis levantar-se da mesa e em lugar de levantar-se aumentou-se no assento. E o desgosto, o desprezo, as mãos ora cruzadas ora sustendo o peso da cabeça. O que dói mais que um infeliz cruzar de dois destinos?
- Agora é que arranjaste a bonita. - pensou.
Se não a conhecesse diria que uma farda, uma espingarda e munições e estava pronta para a guerra. Pena tenho daquele que a encontrar e, ele que tenha, primeiro o impulso e automaticamente a seguir a perspicácia exigida para que quando o olhar dela o incidir ele se possa pôr a milhas dali.
Excluídas as hipóteses, era a última faceta dela que me faltava assistir. Não, não estávamos a jogar ao "Quem é quem?" e muito menos ao faz de conta. Garanto ter sido um caso sério... Bicudo até. De certo tinha acabado de dar férias a metade dos meus neurónios quando a abandonei. Fez dois anos na passada semana, setecentos e trinta dias sem que uma pequeníssima palavra lhe fosse dirigida. E aquela química invejável que possuíamos? Setecentos e trinta dias...
Contraído em divagações não participou do paulatino erigir de Felícia, que acabara de acercar-se da mesa corrida das bebidas e de um trago fazer escorrer até às entranhas um whisky duplo.
- Mecanismos de tortura que nos levam a ponteiros trabalhados em mostradores de porcelana. Tudo aparentemente estudado ao pormenor e, ainda assim, tão fraco, tão efémero. - dizia Felícia em monólogo à medida que passadas largas se estendiam pelo corredor central., - E não foram setecentos e trinta dias meu caro. Foi o teu retrato suspenso na parede do hall de entrada. Foram as poucas tonalidades de voz idênticas à tua que de quando em vez me via obrigada a escutar. Foi o procurar-te em todos os homens e nenhum deles seres tu. Foi o teu toque suave que todas as noites se evapora em mim. Foi a máquina de escrever que propositadamente encondeste na gaveta dos lençóis. Foram as setecentas e trinta cartas sem retorno.

15/02/16. C.V.

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