quinta-feira, 31 de março de 2016

Já quis ser mar e fui terra

Já quis ser mar e fui terra,
Já fui tudo aquilo
que de uma alma se eleva,
e aterra
por o voo ser diretamente proporcional à queda.
Contento-me hoje com a aurora diária
e altiva é a minha comoção com a vida,
simples e precária,
porque nada mais espero
se não aquilo que só de mim espero
e até isso é hipotético e engano.
Agora? Nem mar nem terra!
Assim sou o extenso paredão
que segura e encerra.

C.V. 31/03/16

sábado, 26 de março de 2016

Com conta, peso e medida

De forma recorrente instalamos o nosso íntimo junto daqueles que nos cativam. Quando digo instalar trata-se disso mesmo, de uma instalação que abrange todo um conjunto de passos e leva o ser humano a uma plena liberdade de espírito para com o outro. Ser-me-ia agradável ao ouvido, a mim e a todos vós, dizer que as pessoas que se cativam mutuamente cumprem rigorosamente todos esses procedimentos. Procedimentos? Que vem a ser isso? Mais uma de muitas utopias, embora submersa na consciência de cada um.
A verdade é que a memória não me deixa mentir. Num mundo onde relações de todo o tipo de estabelecem num abrir e fechar de olhos, o seu inverso facilmente se dá. Porque a naturalidade com que se cria e descria o afeto, a compaixão, a amizade, a lealdade e outros sentidos tais me parece assombrosa, diria até desoladora. E por breve alheamento escuto algures Pessoa que sussurra "Dá-me vinho porque a vida é nada.". Não sei se o génio dos heterónimos estaria tão errado assim.
Retomando o desagrado questiono-me, tal como ontem, tal como amanhã e tal como nos dias precedentes e intermináveis. Porque as mesmas perguntas surgirão e não passarão disso mesmo, perguntas suspensas num antro de desrespeito e podridão sentimental. Porque damos, porque sorrimos, porque falamos e confiamos, porque sentimos, uns mais que outros, de forma mais ou menos calorosa. Porque gostamos, porque estaríamos dispostos a qualquer coisa. Porque adoramos. Porque cativamos e somos cativados. Porque caímos no desconhecido.

C.V. 26/03/16



terça-feira, 15 de março de 2016

António Lobo Antunes- Olhar para ontem

Não vale a pena falarmos, para quê, quanto mais falamos mais a gente se magoa um ao outro, fomo-nos distanciando tanto com o tempo, sinceramente nunca imaginei que isto acontecesse, não era assim ao princípio mas nunca é assim ao princípio, as coisas começam a correr mal devagarinho, não damos conta e nisto, de repente, tão longe um do outro, linguagens diferentes, falta de paciência, silêncios que magoam, frases a que não se responde, uma irritação surda, uma impaciência que se tenta disfarçar sem a conseguir disfarçar totalmente, um desconforto mudo mas presente, cada vez mais presente, uma espécie de enjoo, uma espécie de desgosto, o que faço aqui, o que fazes aqui, qual o motivo de continuarmos juntos se não faz sentido, qual o motivo de teimarmos ainda? Se ao menos houvesse alguma coisa que pudéssemos tentar, tu e eu, sentarmo-nos os dois no mesmo sofá, nem que não conversássemos, sentarmo-nos apenas, um ao lado do outro, tu a veres televisão, por exemplo, há aquela novela brasileira que gostas, e eu a olhar para ontem, sempre foi a minha especialidade, olhar para ontem, e permanecermos assim uma hora ou duas, em paz, pode ser que sejamos capazes de encontrar alguma paz, o que é que achas, não estou muito seguro disso mas sei lá, existem surpresas, voltarmos a habituar-nos um ao outro, devagarinho, e tirar prazer disso, pelo menos algum, ainda que pequeno, prazer disso ou, pelo menos, uma ausência de desprazer, o que já não seria mau, pergunto-me se ainda gostamos um do outro e, sinceramente, não conheço a resposta, penso que não, penso que sim, penso que um bocadinho, lá ao fundo, sob o tédio, o ressentimento, o cansaço, porque tanto tédio, tanto ressentimento, tanto cansaço, se mudasses de penteado, se comprasses uns vestidos novos, se usasses saltos mais altos, se me surpreendesses, tornámo-nos tão quotidianos, meu Deus, tão monótonos, não dizes nenhuma coisa que me interesse, não digo nenhuma coisa que te interesse e não é possível não dizermos nunca seja o que for que não interesse o outro havendo pessoas que nos acham divertidos, cultos, se calhar fascinantes, o Carlos, por exemplo, acha-te fascinante, o cretino
- A Amélia é fascinante
aquela tua amiga das saias curtas considera-me o máximo que bem lhe percebo nos olhos, fica de cigarro apagado, feita estátua, a mirar-me e não seria idiota tu inclinares-te para o Carlos e eu para a tua amiga, bastava passarem uns meses para nos fartarmos deles, tanto fascínio e tanta estátua cansam, e daí, quem sabe, não, deixemo-nos de fantasias, tanto fascínio e tanta estátua cansam mesmo, olhemos as coisas de frente, sem infantilidades, cansam mesmo, a questão importante, quer dizer, a única questão realmente importante, é saber se nos cansámos um do outro, do Carlos e da tua amiga podemos, ou não, ocupar-nos mais tarde, no que me diz respeito é não, no que te diz respeito suponho que também, e se a gente voltasse, ou antes, se a gente tentasse voltar a namorar, não sei se sou capaz, não sabes se és capaz, calculo eu, mas o que se perde em tentar, um namoro tímido, lento, envergonhado ao princípio mas que vai crescendo, crescendo, ainda não somos velhos, ainda não desistimos de ser felizes, pois não, o que te parece sermos felizes um com o outro, um beijo aqui, um beijo ali, uma palmadinha no rabo que, se calhar, excita, uma ida ao cinema, um fim de semana fora, num hotel qualquer perto do mar, se não for muito caro podemos, ouvir as ondas no escuro, da cama, enquanto nós, não faças essa cara, enquanto nós tal e coiso, há quantos meses nós não tal e coiso, nós não nada, tu de camisa de dormir transparente, eu, para variar, sem peúgas, se me permites uma confissão, perdoa ser atrevido, acho, como exprimir-me, acho que, não leves a mal, acho que continuo a, palavra de honra, amar-te, isto é a sério, não é da boca para fora, não é assim no ar, acho que continuo a amar-te e, desculpa a presunção, atrevo-me a pensar que continuas a amar-me, se estiver enganado não hesites em dizer que eu aguento, no ponto em que as coisas estão aguento tudo, mesmo esse telefone a tocar agora que não convinha nada que tocasse e tu
- Carlos
sem ouvires o que eu digo, tu, de olhos fechados
- Carlos
tu a sorrires sem ser para mim
- Quando?
tu
- Este fim de semana acho que posso, sim
tu
- Um hotel em Madrid adorava
tu
- O meu marido?
tu
- Há séculos que esse deixou de contar
tu
- A que horas?
tu
- Estou pronta às três
tu
- Buzina da rua que eu desço
tu
- Agora não posso falar muito
tu
- Às três horas tenho a mala à porta
e, se às três horas tens a mala à porta, talvez me possas fazer o favor de deixar escrito aí, num papel, o número da tua amiga das saias curtas que, de certeza, há-de gostar de acordar comigo em Barcelona.

quinta-feira, 10 de março de 2016

O estereótipo abominável

Acabo então por chegar a esta breve conclusão, a de que a vida é gerida por um destes dois fios condutores: necessidade ou hábito, a que podemos de igual forma denominar comodismo.

- C.M, P.4
A primeira criatura que me chama assim. Bom, ela sempre adorou irreverências. Pernas erguidas, oito lances de degraus, meia dúzia de engravatados com ar altivo. Bato à porta e o Esteves passa o cartão
- Olha! Outra pobrezinha... Esta juventude não vai de mal a pior, vai do pior ao execrável.
Miro-os a todos e de todos tenho pena, até do Esteves. Nem dinheiro tem para aparar o bigode. Pobre que é pobre partilha a pobreza e a entreajuda é coisa que se aprende desde pequeno. Dou um toque à J. e ela rapidamente resolve a questão, é limpinho.

A porta aberta antevia a conversa...
- Oh J., por cá?- como se nos tivéssemos cruzado por mero acaso.
- Pois então, como está a peste?
- Fantástica, não se nota? O mesmo não poderei dizer do Esteves... O raio do homem insiste em preservar aquele aspeto carrancudo.
- Só tu para me fazeres rir numa hora e sítio destes. Também insistes em preservar o teu bom sentido de humor!
- Vou fazendo por mantê-lo. Mas olhe que não é tarefa fácil, admito. Ainda não há menos que um quarto de hora aborreci-me com uma situação. Não me aborreci, fiquei desiludida. Sabe como funciona o mundo da linguagem tão bem quanto eu. Deveras chego a crer que se deveria começar a ensinar qualquer coisa como Dialetos Lusitanos ao invés do Português. Pense comigo: seria bem mais atrativo, dado que se iria somente dar continuidade a uma aprendizagem de uma disciplina que nunca existiu mas que inevitavelmente toda a gente absorveu. Não andarão os professores e o ministério equivocados nesta questão? Estaríamos a formar, claro está, ignorantes. Contudo, uns ignorantes felizes. Quem é feliz numa aula de português? Bom, o que eu ouvi foi o seguinte. Não importa de que boca imunda surgiu esta/este... (Não existem adjetivos.) Convém sublinhar apenas ter sido este discurso emitido por um senhor que a priori tem o mínimo do chamado bom senso

- Detesto gripes, fod****. Manda-me bué abaixo. 'Tás a ouvir? (...) A enfermeira Maria... Lá dentro. O cigano é que disse à gente. Ya, cortar o rabo de cavalo, o gajo. Olha quem é ele! Já não ligas aos pobres pá? Isto aqui é o cantinho da saudade pá? Senta aqui... Tudo bem? (...) É verdade, viva ao campeão. Ganhámos é o que interessa. Jogou da maneira suficiente para ganhar é o que interessa. Se jogou grande pequenino não interessa. Dá aí um cigarrinho dos teus, vamos lá para fora masé. (...) Porra, o Patrício não tinha hipótese nenhuma. Agora o Cassilas!


C.V. 11/03/16




quarta-feira, 9 de março de 2016

Por José Paulo do Carmo

"Os olhos brilham intensamente, a alma transpira emoções e eu sinto porque o coração começa a bater mais rápido e a necessidade de uma demonstração física vem ao de cima. Não basta um olá, um adeus ou um sorriso, por muito rasgado que ele seja. Preciso de te passar tudo aquilo que estou a sentir, a intensidade, o calor, para que não haja dúvidas. Não és uma pessoa qualquer, por isso mereces o que de melhor tenho, é a forma mais pura, humana e genuína que posso encontrar para simbolizar a alegria neste momento, a força das relações, o que de melhor tem um ser humano.

Acho que acabámos por perder na história a essência desta profundidade, chegar, olhar, sorrir, abrir os braços e passar emoções, mundo, encostar, fechar, sentir, dar e receber, transmitir, envolver e deixar ir. Vejo por aí muitos abraços sem vida, sem razão, sem respeito pelo gesto, coisa banal que se subjugou ao beijo e que se deixou ultrapassar pela frieza e egoísmo do premeditado, do formatado, do "porque sim"."


sexta-feira, 4 de março de 2016

O capítulo final (finalmente) e a revisão

Sobreviva quem souber, salve-se quem puder.

(...)

Ontem
- Felícia, ele tem outra
Hoje
- Felícia, ele tem outra
A subida do Camões que diz
- Felícia, ele tem outra
Até o maluco da Rua do Ouro
- Metes-te ao jeito... Olha no que deu. Oh dona, era mais que previsível que ele tinha outra
A Amália! (Deus lhe dê o merecido descanso) aos tombos, pobre defunta
- Sempre disse que havia muito espinho naquele florido todo. Vais pela estupefacção e deslumbramento inicial... Olha no que deu. O meu sexto sentido nunca falha!

(...)

1932, 14 de Setembro

Gosto de ti, mas ontem meteram-se uns assuntos por intermédio que me fizeram não ter tempo para te escrever.
O contabilista não dá uma para a caixa e ainda chamo eu àquilo um contabilista. Até a minha avó zarolha fazia figura mais bonita. Ai não! E depois o trânsito. E depois os travões que falharam. E depois uma amiga que demorou duas horas para me prestar auxílio. E depois o jantar como forma de compensação. Olha que fiquei bastante agradado, é uma boa companhia, sabe estar, sabe falar... Pareces tu. Mas eu gosto é de ti.

(...)

Gosto de ti. Garanto que gosto. Juro por tudo o que de mais sagrado existir que gosto de ti.

(...)

Quando cheguei a casa tinha o correio em cima da mesa e mal dei com os olhos no primeiro envelope a temperatura ambiente deve ter subido para lá de 10 graus. Ela não abriu mas ficou suspensa sobre o que a carta poderia conter. A verdade é que ela nem precisou de abrir e tu sabes o motivo. Aconteceu que vi-me entre a espada e a parede. Melhor ainda, entre o confortável e o desconhecido, sejamos honestos. Deixando-me só, obrigou-me
- Ou eu. Ou ela. Simples. Muito simples.
E a resposta tu também já sabes. Desculpa-me a cobardia.

(...)

Catarina Virgílio. A 4 de março de 2016


quinta-feira, 3 de março de 2016

Escondemos tanto que acabamos por revelar tudo. Sem querer. E era tudo o que menos queríamos. Que o outro soubesse, que o outro mantivesse aquela réstia de suspeita sempre presente. Jogamos com as pessoas como os reformados da minha aldeia jogam à sueca, como uma banalidade pertencente à rotina. Envolvemo-nos num círculo de lamentos (círculo de mentiras?) e a sinceridade já muda de nome
Ponto

C.V. 03/03/16